Qualquer coisa de literário

Os ecos do passado encontram-se nas centelhas de lembrança quando, no presente-sempre-presente, vagueiam pela mente num infinito temporal onde tudo está aqui e agora mas é, afinal, a nossa primeira memória. 

Lembro-me, por exemplo, de um dos meus primos a empurrar-me vagarosamente no triciclo onde estou montado, terraço fora. Indo e vindo, tal como é o carácter das reminiscências. Lembro esse terraço iluminado pelo sol fresco de uma manhã de Verão, com muitos vasos de flores evadindo-se para o alto ao longo. Lembro-me de termos muitos gatos - sempre foi assim, na minha infância -, alguns, já mais fortes, sobem até ao sótão pela escada que está sempre acessível, encostada nas paredes. Lembro o meu tio ao Domingo. Da sua barba grande que me petrificava de medo. Depois do terraço, saímos para o jardim. Havia logo ali uma pedra gigante, em forma de paralelepípedo, que segurava um esqueleto de ferro do que foram, um dia, bancos de automóvel. Havia assim alguns destroços pelo jardim. Se o vento nos voltasse à esquerda, deparar-nos-íamos com dois ou três pneus gastos, empilhados, servindo de vaso a jarros, e também para bifurcar os caminhos. Um dá para o poço, outro para o resto do jardim. A imagem destes pneus-bifurcação de caminhos acompanha-me sempre, sobretudo quando vejo a gata branca que tivemos parir a eles encostada. Era a segunda ninhada que paria - estes não tiveram tanta sorte: a gata levava-os do sexo à boca para os matar. Carnificina que dá qualquer coisa de literário.

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