O esperado dos objectos
Embora velho, era aparentemente um carro sem nada de especial. Um motor, pneus, bancos para nos sentarmos, um volante... Não era, porém, uma máquina com as outras, sensível e obediente, e isso tornava-a simpática, umas vezes, claro está, porque outras... Nós desconfiávamos de que ela talvez já tivesse ultrapassado o estádio de simples máquina e pensasse. Nada de cérebro electrónico, naturalmente, era um velho carro modesto. Mas, enfim, vivera muito, vira, por assim dizer, muito. Sabia. Como podia ser de outro modo? Já pensaram o que é dirigirmo-nos para o barco que faz a travessia do Tejo, estar longo tempo numa bicha, avançando muito lentamente, e depois o carro parar mesmo na ponte? Ou no meio da Rotunda à hora de maior trânsito? Ou em plena estrada, numa curva perigosa, precisamente numa curva perigosa? Já pensaram? Não, não podia ser coincidência. De resto não acredito na matéria totalmente bruta, acho que as coisas pensam, embora pensem errado, ou, pelo menos, de um modo estranho. Nunca vos desapareceram das mãos, as coisas? A mim desapareceram. Juro que as pus ali; estão além. Tenho a certeza absoluta de ter fechado aquela gaveta; está aberta.
O carro pensava, estou certa disso. Recusava-se a continuar, nos momentos mais difíceis, talvez para mostrar que estava cansado, que já não tinha idade para aquelas folias. Queria um lugar tranquilo para sossegar. Nós não podíamos dar-lhe esse descanso e ele zangava-se, tinha uma birra como as crianças pequenas e os velhos de muita idade. Então a ponte, então a Rotunda, então a curva perigosa.
Trazíamos sempre connosco um garrafão de água porque ele era insaciável. Bebia, descansava um pouco, resolvia-se, embora relutantemente, e só quando nos via bastante aflitos, quase em pânico. Mas era um favor que nos fazia, dava-o a entender. Podia perfeitamente não andar mais, se quisesse; consentia em andar.
Não sei se ele ainda existe, mas não creio. Era velho de mais e tinha uma personalidade exagerada para sobreviver.
Penso nele, às vezes, quando as coisas se escondem.
Maria Judite de Carvalho, A Janela Fingida, 1968/69
Sem comentários:
Enviar um comentário