Um Deus para a vida

Jesus é radical. Ele não é uma proposta de caminho: Ele é o próprio caminho, se é Deus. Alguns acreditam que não é Deus, o Único e super-potente. Vinha lá dos céus agora aos homens dizer que é Deus. Não. Mas esse ainda é um caminho mais estranho, porque Jesus é filho digníssimo de Deus numa forma não-trinitária, é portanto quase uma presença de carne banal surgida da carne, e não se percebe nada do que andam eles a pregar sem a autoridade de um ser omnipotente que se faz presença sobrenatural no mundo.

Eu gosto de pontes.
Mas Jesus divide, se for mal entendido. Se fizermos a nossa muito própria interpretação, vamos sempre ficar com rasgões de incompreensão, que, não sei se não é mesmo a única forma de se ficar depois de conhecer Deus... a partir desse embate com o rosto de Jesus, muita coisa se liberta, aquilo é o mais próximo que um ser humano pode estar da verdade, mas há também um lugar incómodo, que é aquele Olhar que assombra a vida, possui, e com uma força extraordinária e sobrenatural não nos deixa ir. Ir, onde? Pelos devaneios do natural, pelos mitos da realidade, pelo sem-apelo do ateísmo - creio que já é muito por onde hipoteticamente ir.
O mundo sou eu

Sou um artista sem arte. Não me dou por falhado, porque considero que ainda nem tentei. Mas sei que tenho arte nas veias. E a minha expressividade chega a muitos horizontes. A verdade é que tenho um olhar muito cínico na arte, isto não me vem do ser, do entranhado. Tenho de fazer esforço, pesquisar, como aliás todos os artistas. Isso da inspiração, do dom divino, é outra conversa. Creio que é a incerteza do que vou encontrar, especialmente se serei acolhido, e bem acolhido. Tolhe-me pensar que serei ignorado. Como sei que uma parte de mim será, implacavelmente, ignorada, não me lanço de corpo e alma, que isto da arte, em certos aspectos, mete um medo terrível. Outro aspecto que me agoniza o espírito é saber se, além de bem acolhido, serei renumerado por isso com dignidade. E voltamos ao cinismo... E depois ainda temos o vazio e inutilidade de tudo; a vaidade de tudo... E portanto deixo-me lançado às virtualidades; vou vendo os outros lançarem-se, com mais, ou menos, tosquice - pelo menos a lata na cara, que é precisa, têm às carradas.

A cultura

Só Deus fala dos homens melhor do que eles próprios.

Ao pó voltarás

Eu sou um artista, um filósofo, um poeta, o que é quase o mesmo que dizer um condenado. Proscrito, degredado, um pária, porque sou dos bons, dos eternos. A minha dor é saber se me sacrifico e em que nome, já que esta vida de produzir e consumir já quase nada me diz. Eu vejo essas pessoas pelo mundo a lutarem no meio material, para viver a dignidade, e quase me apetece rir de tão patético. Se não fosse trágico... Eu, que conquistei o pensamento, domei os instintos. Sou como um gato antes do momento perfeito de captura da sua presa, enquanto os outros são meros gatos tolos que se metem na estrada à sorte e saem atropelados, mas pensam que sobreviveram.

 

Lavar os pés, a alma, a revolta

Se vos dissesse qual a mais verdadeira e profunda face de Deus, temo que ninguém mais aparecia na Igreja. Deus pode ter inspirado muita beleza, que em tudo é subjectivo, mas Ele é mais de Justiça. E Pai. Não é avô, que leva a criancinha a ver os patos no parque ao Domingo depois da Eucaristia. Deus preocupa-se se o filho dá um passo em falso e quase cai ao lago, mas também repreende as asneiras da caminhada. A mim, interessa-me mais este Deus: o que está lá fora, ao frio e à chuva, descalço, dissimulado, em círculos infinitos no parque, enquanto nós, acomodados no bar, olhamos para Ele e não o reconhecemos enquanto Deus e nosso Pai. Por todos os motivos. É genial...
Morder

Eu sou mais de acreditar em projectos loucos como a santidade do que a economia. O Nietzsche dizia que era dinamite; mas eu sou a explosão das cargas em si. Ter nascido pobre não pode ser um mero símbolo. Uma pertença, sem esperar a canelada de volta. E quando ouço os ignaros, com a sua luz falsa e corrompida de doutos, lançarem as suas maldições ao meu caminho, rio-me com estrondo neste sorriso submisso. Deus, e a economia, é que me quiseram revoltado.
O que a catequese não diz aos putos; percebe-se, estar alerta é uma cena bem mais sangrenta

A bondade infinita de Deus. Não existe. Caso contrário, o Inferno está vazio, não porque a Misericórdia divina tudo perdoou, mas porque não existe. E por que não existe Inferno? É muito óbvio: não existe um anjo revoltado, Senhor do sítio das almas condenadas e dos demónios. Porque se a bondade de Deus fosse realmente infinita, o Mal anular-se-ia. Mas não é assim que funciona; o Inferno, é bom que exista, e o diabo junto com ele. O Mal torna-se contingente e possível.

Deus tem paciência e Misericórdia até um certo ponto, que nós, mortais, não alcançamos a medida, e só nesse algures podemos dizer que é infinita a sua Bondade. Deus pode ter outros atributos infinitos, como a sabedoria (Ele soube que aquele anjo estava caído, que se tornou Puro Mal, senhor da Mentira, de absurdo antemão), mas o coração Dele também se rasga e sangra; é vulnerável. Sofre por ver as suas criaturas desviadas e não concerne à sua Vontade e Amor.

Deus criou tudo com a liberdade extrema e o limite de Aceitar ou Rejeitar. Claro que este mundo é um espelho pálido desse lugar limite, que é a Face do próprio Deus. Mas tudo conta, aqui. O que fazemos aqui, fazemos lá. Essa é uma verdade da fé.

Porque podemos obstinar-nos com o nosso poder, o nosso ego, a nossa presunção, e, aí, é metade do caminho feito para cair. Para enlaçar-se no Mal. Não há Misericórdia que salve ou justifique. Nós vimos, sabemos, e rejeitamos. Deus dá-nos essa liberdade. Claro que não é tudo tão liminarmente decidido, preto no branco; existem variáveis infinitas que, a seu tempo, Deus torna claro quem lá pelo meios somos nós de verdade na vida.
Só músicos do black metal podem comentar este texto; o resto, ide à merda com as vossas questões existenciais Pessoanas foleiras e cheias de acne 

Creio, com toda a certeza absoluta, que a existência de Deus está comprovada. Com a razão possível. Deus não é o tipo criador das galáxias e dos infinitos, é muito além disso: É o que surpreende a imaginação humana. Mas deixou que a razão também o encontrasse.

Muito visual, ainda por cima, eis as provas racionais: o Argumento das Cinco Vias de São Tomás de Aquino dá conta do recado. Simples e eficaz. E está connosco há séculos e séculos... Não vê quem não quer, ou, aqui, aplica-se que nem uma luva: pior cego é aquele que não quer ver. Mas, sim, ainda existem ateus que, na tentativa remota e cómica de contra-argumentar, dizem: e qual é a causa de Deus? (risos) Infantis que nem pensar e ler sabem. Esse é o primeiro ateísmo. Um ateísmo primário, burro como o caralho.

Não é esse ateísmo que me interessa. Interessa-me, cada vez mais, o ateísmo que vai ao encontro do que o ateísmo é: satanismo. Quem se assume satânico tem créditos e legitimidade para ser, também, ateu; os outros são meninos... meninos daquela "indiferença" burguesa apalermada sobre a questão de Deus. Para esses, reflitam primeiro em São Tomás de Aquino antes de pensar em não-questões e verbaliza-las. Fariam melhor figura.

Ou seja, o que estou a dizer é que, quem quer ser (porque temos de ser alguma coisa neste mundo) ateu, tem de levar com o diabo no lombo; o Inferno, e por aí vai. Não é só «não acredito em Deus». Ou melhor, é isso mesmo: não acredito que exista, que seja bom e intervenha na vida pessoal. Exactamente. É meio caminho andado para o oposto, e automático, diabo. Porque...

...é muito fácil dizer que se acredita em Deus desde que não haja diabo, não é? Parece um mar de rosas. Mas a própria existência de Deus justifica-se com a existência do diabo: Como explicar o Mal (em toda a extensão moral e física)? Como explicar a corrupção do mundo físico e os valores negativos que o ser humano é livre para perpetrar? Pois... só com isto: batalha entre o Bem e o Mal. Sempre, a toda a hora. Somos estes seres em batalha.

Então, admiro quem se posiciona do lado oposto ao de Jesus, bestializando-o, cuspindo, renegando: significa que sois ateus, parabéns! Sinceros.
Com o amor não se brinca

No novo filme de Sean Baker, confronta-se a maravilha dos olhos que é o sexo com a maravilha da alma que é o amor. As conclusões são prosaicas, ao longo e depois de ver Anora. Felizmente, o amor impera. Como sempre.

 

O conhecimento imediato do ruído

O som que me anima é distante
e desconheço que incerteza possui
na lama de um poder caótico -
sempre caótico que teima enlear-me.

Mas eis a vida, sugerindo frases, noites de Verão, abraços vespertinos, arabescos como ombros imperfeitos onde chorar sem razão aparente. Ei-la, cantando pelo desenho do leito de um rio abundante e tímido como as raízes expostas ao Sol, cicatriz ferrada por tigres leucísticos, lua omnisciente no tratado da alma imensa, descendo como lenha ao fragor humano e inspirador.

Era uma noite vazia
eu eu eu
ninguém -
espreitando a inbeleza da mulher
da música concreta e definitiva,
Era um Sol crescendo só em mim
e não aquecia,

rosnava, julgava e enviava-me ao lugar de início. Hoje encontro-me e divido-me na tua espera. Puxo a cadeira para trás como um fantasma farpado. Sinto o coração eléctrico. Onde estou, estou de pé. Toco, limpo, resguardo e sopro o melhor para o teu lado. Se vieres.
Só pode ser a gozar

Lembro-me de Miguel Real no Jornal de Letras. Sempre assíduo na crítica literária, mas em espaços à volta também. Escreve muito, mas nunca apreciei a sua prosa, nem crítica, sempre de encômios quase automáticos aos grandes nomes [Saramago e Pessoa à cabeça]. E assim tem sido. Agora, parece, lançou-se a Deus, que diz banal e não senhor da História não senhor, e ao Catolicismo com unhas e dentes. Não interessa que Miguel Real só destaque a religião, e a ICAR, pela negativa, escondendo o positivo porque sim. A mim interessa-me mais numa perspectiva pessoal e de crítica íntima a Deus, fora da religião enquanto forma institucional. E está a ir bem, é um orgulho nacional... Porque, dígamo-lo já, é mais grato guerrear com o Miguel Real, enformado pela universidade, e por isso com melhor pulso, do que com o pacóvio do Saramago, que é fraquinho e só vaidade oca. Tem um sentimento mais profundo e melhor conhecimento das pessoas, circunstâncias, costumes. E por isso faz pensar, o Miguel. Diz coisas de Santo! Como ele sabe tanto destas coisas de vida de padre! Esta é uma delas (neste artigo do DN):

A religião nunca morre porque não é encarada a sério, apenas como consolo da mente e suavização da vida, depois cada um faz a sua vida sem nada ligar à igreja. E, sobretudo, como esperança do futuro.
Deixar pr'a amanhã 

Há muitas formas de encontrar Deus, até às avessas, quando Deus vem e nos resgata do poço fundo onde nos encontrávamos; mas só uma é plena e é a verdadeira: a Caridade. É na Caridade e no bem que fazemos aos outros que encontramos o Deus real e verdadeiro. Quem pensa que Deus é ausente, olhe para o pobre ao seu lado, doe de si, de múltiplas maneiras e com verdade, e Ele far-se-á presença. Não se espere que Deus venha em sonhos pôr-se à conversa, que há sinais, que Ele se revele face a face porque sim, que, que, que... um mundo infindo de misticismos que não funcionam. Existem estas pessoas, escravas e obedientes dos seus sentimentos - sou bom e mereço - e não se mexem, não filtram, são viciados no seu solipsismo, quase hipnotizadas pelo pensamento próprio e a autoavaliação.
O caminho para lá não é igual aos caminhos daqui

É preciso entender que Deus é para os mais pobres dos pobres. Para os desvalidos. Deus é para aqueles que sangram à procura de respostas... Os que carregam a Cruz com maior sofrimento. Esses têm um destino maior do que a imaginação pode suportar. Têm de acreditar Nele, claro, não é qualquer jagunço ateu ou javardo todo comido do cérebro... Deus tenta, de uma forma ou outra, reconduzir cada um até Ele; mas há os que não querem, e Deus respeita a sua liberdade, a liberdade para odiar, e afasta-se. Mas só depois de muito peleio...
O Nobel da nossa querida literatura

Bem, Han Kang. Não é um anúncio muito unânime, e percebo porquê. Parece um nome daqueles que passando a febre do momento já ninguém saberá quem é - o Nobel é pródigo neles. 

Li-lhe dois livros e tenho um terceiro por ler. Da obra traduzida, só me falta comprar o Livro Branco. Ficou eternamente adiado assim que concluí Lições de Grego, creio que no ano passado, que não me arrebatou, muito longe.

Ainda assim, gosto mais de Han Kang do que a conclusão que faz a Academia Sueca sobre Han Kang; é sempre igual, parecem carneiros na contagem. 

Longe de ser genial, tem lampejos bons. De literatura sul-coreana é isto que conheço também; ah, e uma antologia de contos [por ler] com vários autores contemporâneos do país.
Décalage 

Se tivermos de comparar Deus com o diabo em termos de automóveis [só para se perceber do que estamos a falar], diria que Deus é um Mercedes-Benz CLE Coupé vermelho-ferrari com uma gata - chamada Maria - cheirosíssima lá dentro e à tua espera, enquanto o diabo é um Fiat Uno a cair de podre com techno foleiro aos berros e quatro ladrões desdentados lá dentro a acelerar pela rua fora de modo a chamar à atenção do maior número possível de alminhas. E não é que consegue?! 

Como alguns preferem entrar no Fiat Uno de livre vontade é um mistério que me apoquenta, ao invés de me pôr curioso, ainda hoje. Mas eles lá vão, com o motor a rufar e em fumos negros...
Procura um poema

Os versos eram pequenos deuses que escondia em vasos.

Lembrava os dias longínquos de criança; a ver se lhe desperta um novo poema. 

Vai até à escola, lembra quando marcavam as balizas nas paredes. Vem-lhe um sorriso discreto à cara. Hoje, passa pela escola a caminho do trabalho, a mesma, e já existem balizas. Até cestos de basquetebol. Mas muito menos imaginação e traquinice, claro. 

O chão está pavimentado. No seu tempo era de terra batida. A escola agora tem uma mensagem, visível para quem passa, ler: Se me ensinas com amor, eu aprendo... E Gustavo lembra-se do contínuo protegendo a empregada de limpeza do marido, que veio procurá-la à escola com tiros de caçadeira. Os meninos a recolherem às salas de aula. A polícia, entretanto. As sirenes, as luzes azuis a baterem no quadro, aquela adrenalina, aquela incompreensão do mundo em que vivem os adultos. O medo. Medonho medo.

Nada disto lhe desperta um poema.

O esperado dos objectos



Embora velho, era aparentemente um carro sem nada de especial. Um motor, pneus, bancos para nos sentarmos, um volante... Não era, porém, uma máquina com as outras, sensível e obediente, e isso tornava-a simpática, umas vezes, claro está, porque outras... Nós desconfiávamos de que ela talvez já tivesse ultrapassado o estádio de simples máquina e pensasse. Nada de cérebro electrónico, naturalmente, era um velho carro modesto. Mas, enfim, vivera muito, vira, por assim dizer, muito. Sabia. Como podia ser de outro modo? Já pensaram o que é dirigirmo-nos para o barco que faz a travessia do Tejo, estar longo tempo numa bicha, avançando muito lentamente, e depois o carro parar mesmo na ponte? Ou no meio da Rotunda à hora de maior trânsito? Ou em plena estrada, numa curva perigosa, precisamente numa curva perigosa? Já pensaram? Não, não podia ser coincidência. De resto não acredito na matéria totalmente bruta, acho que as coisas pensam, embora pensem errado, ou, pelo menos, de um modo estranho. Nunca vos desapareceram das mãos, as coisas? A mim desapareceram.  Juro que as pus ali; estão além. Tenho a certeza absoluta de ter fechado aquela gaveta; está aberta.

O carro pensava, estou certa disso. Recusava-se a continuar, nos momentos mais difíceis, talvez para mostrar que estava cansado, que já não tinha idade para aquelas folias. Queria um lugar tranquilo para sossegar. Nós não podíamos dar-lhe esse descanso e ele zangava-se, tinha uma birra como as crianças pequenas e os velhos de muita idade. Então a ponte, então a Rotunda, então a curva perigosa.

Trazíamos sempre connosco um garrafão de água porque ele era insaciável. Bebia, descansava um pouco, resolvia-se, embora relutantemente, e só quando nos via bastante aflitos, quase em pânico. Mas era um favor que nos fazia, dava-o a entender. Podia perfeitamente não andar mais, se quisesse; consentia em andar.

Não sei se ele ainda existe, mas não creio. Era velho de mais e tinha uma personalidade exagerada para sobreviver.

Penso nele, às vezes, quando as coisas se escondem.

Maria Judite de Carvalho, A Janela Fingida, 1968/69
Mulheres de salto alto

Eu admirava os seios das raparigas na reprografia 
a sua ausência, a sua desnutrição
enquanto fotocopiavam um livro de David Foster Wallace.
E admirava não porque os escritores fossem uns chatos
lúcidos e aborrecidos
autofágicos sem coração pendente.
Eu admirava os seios das raparigas
porque não conhecia os escritores
e os seios assemelhavam-se a botas de salto
a Março
a uma polpa derivativa em que dava gozo sentir tocar planar
eram os seios uma gramática sem entendimento
uma força inesgotável de recursos
tsundoku sem princípio nem fim
que eu espreitava.
O cinema e o drama do ateísmo entre a verdade

As artes gráficas, muito especialmente o cinema, tem o poder de abordar a morte de uma forma que melhor se coaduna à verdade humana e total. Sem partes nem quês. As vezes que exageramos. De Ordet de Dreyer ao recém estreado Grand Tour de Miguel Gomes vai uma linha de hipérbole saturada. Mas quando muitas vezes, do cinema francês (Brisseau, Garrel, etc.)  às culturas orientais, particularmente nestas (Kurosawa, Weerasethakul, etc.), vemos aquele truque de colocar mortos de novo na vida da película, e que falam e interagem com o mundo vivo, é de esperar uma exigência metafísica ao espectador que por vezes não tem; mas tem a verdade, universal, de que não se morre, transforma-se. São muito poucos os seres humanos que, racionalmente, acreditam no nada. E, no fim, é uma crença como qualquer outra, reduzidos à sua insignificância. Ter um corpo e mente que pensa é um acaso, note-se a ironia. Mas sobre o drama que é o ateísmo, teríamos muito a dizer.
Em que filme gostaria de viver? E o contrário?

Um filme é um lugar protegido e artificial. Vem das mecânicas da estética que assim seja. Se fosse o contrário, não era um filme em primeiro lugar.

Então, um filme em que gostaria de viver: A Face in The Crowd, de Elia Kazan. Aquele Lonesome Rhodes a gritar no vazio por entre arranha-céus americanos enquanto a música swing negra se afasta. Sim, é um bom lugar para se viver.

Um filme em que não gostaria de viver: Taste of Cherry, de Abbas Kiarostami. Este filme é um dos meus all-time favorites, mas a perspectiva de ter um psycho numa terra pouco menos desolada do que a Lua a pedir-me para o enterrar na terra fresca, parece terrífico.

Dois filmes para duas ligações: ser parte de ou não ser. Podia continuar ad infinitum, com mais propostas, mas estes foram os que me vieram à cabeça depois de tomar um soporífero. Já estou a navegar com os peixinhos, as pernas sabem que tocam o chão, mas, no tempo, não sei quem são. Vou dormir.
Os teus olhos tristes e castanhos

Só passados vinte anos sobre o primeiro olhar, Artur gostou dos olhos dela. Eram tristes, emoldurados por umas sobrancelhas finas e inclinadas no sentido descendente a partir do cimo do nariz. Eram tristes, olhos de tarde, tinham um castanho invulgar de tão castanho que era. Havia naquele olhar um incómodo sobrenatural quando miravam Artur - ele via isso agora. Era o seu primeiro encontro, e o que ela lhe contava, o seu joie de vivre era contagiante. Por isso Artur não soube o que estavam aqueles olhos ali a fazer. Há vinte anos atrás. Mas hoje entendia e apreciava a sua presença na memória.
Musica de la arquitectura

Comprei para ler um livro, edição crítica em castelhano, de textos/reflexões de Iannis Xenakis. Sobre a música e sobre a arquitectura. Como uma vai dar à outra; como não vivem separadas. Quem não conhece a biografia de Xenakis, a música e as obras arquitectónicas, pois deveria conhecer o mínimo. E, de seguida, ler este livro.
Marca d'água

Não parece incrível que cada pessoa tenha uma identidade forte e única quando foca e dispara? As máquinas fotográficas, à partida, servem para o mesmo efeito. Mas, pelos vistos, o olhar é único nessa extensão do olho humano que é a câmera. Não se tratam de simples preferências na hora de disparar. De fotografar aquele recanto ao invés daquela paisagem. Os enquadramentos, o tratamento pós-disparo, até o ângulo, o horizonte, a perspectiva preferencial, tudo muda de pessoa para pessoa. E, no entanto, as máquinas são todas iguais.
El magnifico

Quando vejo alguém falar de Deus como O mistério insondável, fome humana pelo inefável, a envolver tudo num grande misticismo da loja dos trezentos, só me apetece vomitar. Parece que estão a falar de algum feito extraordinário humano, que o descobrimos ainda agora. Claro que eu não tiro, de longe, a qualidade, mais do que misteriosa, mágica, de Deus; mas Ele quis viver entre nós, foi um de nós, e isso é um elo mais forte do que O olhar à distância do horroroso insondável... Deus é para se viver, é para ter uma relação íntima, mais íntima do que se possa pensar; Ele cuida dos mínimos detalhes... Deus tem um rosto, uma resposta, um sorriso e um belo sentido de humor.
Paisagem violeta

O tempo passa lento se o ocuparmos de prazer. Conforme a música tem altura e duração, as perguntas que fazemos ao universo tendem a reduzir o nosso prazer, e por consequência, o nosso tempo.
Das imagens apaixonadas

O desdém por toda a acção é o que significa resumir-se na abstração e no abismo da viagem iniciática, que toda a vida deve compreender e guardar como absoluto, inteiro, em si mesmo um propósito maior do que a memória de um tempo. O óbvio não é que tenhamos um forte gosto doce no coração da memória por esse tempo, como um fogo jamais extinto, mas que o possamos ligar sempre que possível, como modo, talvez absurdo, de estar no mundo, que é o do apaixonado. Os monstros que se repetem são sempre uma possibilidade de redenção. As más coisas não nos vêm anunciar a desgraça, raramente o vem, mas o aviso de uma imagem a ser evitada.
Pecado original, ou de como perder-se na multidão

Tento ser alguém tendo sempre em conta que não sou ninguém.
A arrogância de nada saber

Conheço pessoas cujo maior defeito é a arrogância [que não a do cientista ou do santo]; é a que está escondida atrás de uma suposta humildade (para mim, humildade é dizer tudo está bem) - mas humildade de meios ou circunstâncias, que podem ser contornados, é hipocrisia, não é? Mais um defeito a juntar nestas pessoas. São semi-analfabetos sem saber. Quisera eu que nem soubessem escrever; enchem a internet de esterqueira, bitaite, teorias malucas ou ocas. Alguns não lêem a capa de um livro vai em anos, têm-lhe um atrito, à cultura, que é rasgão macerado lascado. Não gastam um cêntimo. Mas eles sabem muito e enraivecem-se com quem sabe mais do que eles. E por isso as suas semi-verdades e os seus achos tornam-se logo categóricas verdades ou que se foda quando as operações lhes fogem das mãos. Mas não dizem que não sabem, nunca. Parte de fraco não é com eles, fica mal. Gente desta é um perigo.
Ao tempo, do tempo que urge

Como diz Otelo a Desdémona - «devemos obedecer ao tempo» -, a propósito de um tempo efectivo para amar, também a mais corriqueira das ânsias lhe obedece; não é só os prazeres mais sublimes da vida - e isso traz-nos alguma satisfação de vingança, ou um alívio súbito por nos sabermos tão pouco bafejados pelo divino (não suportaríamos o amor infinito no tempo), quando o tempo encarrega-se de nos mostrar a sua presença em tudo o que toca. Pergunto-me ainda: no que não toca o tempo, excluindo o escritor de céus que é a nossa consciência?
Habituar o corpo à eternidade

No princípio era o vazio, e o vazio era preto. Depois veio a vida para que, nós, vindos daqui e dali, ganhássemos acuidade para ver o vazio deixado para trás. E contemplássemos, com os sentidos do corpo e da vida, esse vazio. Essa eternidade nas cores estendida. O vazio vem agora, toca-me o corpo. Mas o corpo não está habituado. Precisa de ver, cheirar, tactear. Conhecer. E lá vai ele, desde que abre os olhos e chora pela primeira vez.
A estória dos homens é a história de Quadrinhos

Quadrinhos tem uma ferida na mão esquerda, ou direita, e acredita que o mundo começou com Adão e Eva - nem faz sentido outro pensamento. E se os humanos comem carne, essa não é uma vontade expressa de Deus, é consequência do instinto e pecado dos homens. Mas, depois, Deus dá a permissão para comer carne. Ser vegan é pecado, além de pouco saboroso. Quadrinhos toma a conclusão mais fácil, sem chatices de ordem moral.
A ficção de estar vivo

Tudo era uma afectação. O luar, o lápis na mesa levantada, a viola para um canto perto do aquário deitada. Gustavo via o horizonte e o horizonte inundava-o como um cheiro. Destravada, a voz do cantor rock nas colunas da aparelhagem lembrava-o da beleza dos improvisos. Mas, ainda assim, tudo lhe era caro ao espírito. Os livros, tudo o que acumulara. Às vezes, nem estava. Eram areias rápidas, pós orgásticas, fedores de sementes estranhas a si mesmo. Cambaleava os dias neste secreto piso de terras aquosas, nada estável. Acordava e era de cada vez um suplício manter-se acordado; as ervas e as silvas cresciam, o clímax de amantes distantes, tudo era certo. Na televisão, se a ligava, eles eles eles no seu ritmo psicótico, que caralho são eles?

As reconciliações fazia-as na noite. Punha a mesa e escrevia. Queria uma língua nova, um corpo novo, um estar e sentir diferente desta alteridade quotidiana feita de nada. Então, escrevia noite fora, não precisava de quem era, nem de quem pensava que era. Escrevia sobre a morte, de uma forma vertiginosa, tal como a descida da águia à presa no campo aberto. A morte era belíssima como a vida, pulsante, havia nela uma filosofia em termos evolutivos que o cativava. O outro lado, nunca o pensara, cátaro livre. Achava um lugar-comum nojento. Escrevia na morte uma revolta violenta da ficção. A beleza que não havia sido pensada.

Mas para que queria ele a lição da morte, se não como acumular de saber e uma certa serenidade alcançada nessa sabedoria? Ele sabia que enquanto maior era o refúgio que estava a construir na morte, melhor saboreava a vida. Por experiência. Haviam certos eventos do passado pessoal, e a necessidade da arte, que eram pontos inacessíveis de escuta e observação reprimidas pela virilidade da vida em puro êxtase desses demasiado jovens e burros. E imortais, por desgraça.

As faces sabiam-lhe a mesmo. Eles podiam ser alienígenas, pinos ou mágicos com necessidades sexuais apenas. Não amavam a beleza como secretamente Gustavo amava.

Ensolarado, de improviso, escrevia à morte para lhe medir a ficção de estar vivo.
O passado não passa

Ele está sempre aqui; sou eu, sempre mutável e solidificado. O presente é gasoso e o passado é sólido. Podemos, na arte, passar o passado a gasoso, torná-lo num presente que não se agarra, não se vive mas que, no entanto, não passa? Será o passado tão maleável como aparenta?
Os olhos fechados e os olhos abertos

Tenho sonhos estranhos. Às vezes sonho o princípio de um livro, acordo e ligo o portátil para apontar ideias. Outras vezes sonho quase livros inteiros, ou a ideia inteira do livro, acordo e ligo o portátil, mas esqueço tudo porque é muita dose de ideia. Retenho os princípios, mais uma vez. No dia a seguir aos sonhos, leio obsessivamente, a antever, e prever, se isto é vida para mim. De dia os sonhos descem à terra, tudo é muito bonito e real que dói de olhos abertos. Os fios nos postes de electricidade continuam a baloiçar no vento como quando era criança, mas não há papagaios de papel que lá se emaranhem. Nem sei se as crianças hoje sabem o que é um papagaio de papel. Deve ser um sonho. De olhos fechados.
Descida

A sinceridade é boa para o amor e a literatura existencialista. A poesia é um fingimento, uma descida surrealista de imagens esboroadas no íntimo do poeta. O poeta pretende agarrar, mas o seu objecto escapa poema dentro, fica a sós na técnica. Com as imagens surrealistas; e ordena-as, se tanto. Escrever é dor, mas raramente atinge picos de desespero como na poesia, em que a ordem de marcha é gorar as expectativas da própria frase, ou verso, e que tudo continue a fazer algum sentido. Que se lhe sinta a música. Dissonante, de teclas partidas.
Razões da existência

Uma foto pode ser apenas uma cor, plana, ou pode conter um trabalho mais elaborado, de perspectivas e de detalhes ínfimos. Mas o que lhe dará o ser propriamente dito é o seu título. É na entabulação da imagem com o texto e ideia literária que nasce a grandeza de uma foto. Se se mostra uma colecção de fotos, sem título, a qualidade fotográfica pode lá estar e ser muita, mas não aporta nada à sua razão de estar ali. Não há a dinâmica de existência, entre criador e ser criado.
Ou de nós, noutro tempo

As melhores imagens de literatura que se podem conceber vêm sempre da observação atenta dos outros. Se nos voltarmos demasiado para dentro, em breve secamos, e não dá chão literário. As imagens são ocas.

Um escritor que creio exemplificar extraordinariamente isto mesmo é Dostoiévski. Todos os seus livros. Mas há uma pequena novela, como que a tomar fôlego para o que se seguiria, que em português foi traduzida como Cadernos do Subterrâneo, em que o diálogo com o íntimo próprio de Dostoiévski, enquanto ser emancipado do leite e mel da infância, colide de frente com grande estrondo com o cenário social que o rodeia numa época pessoal de grandes metamorfoses. Conquistas, derrotas de um homem tímido e sensível; o homem à procura do seu lugar no mundo e, mesmo, à procura de si próprio. É o homem na sua bolha, observando as atitudes dos outros e pensamentos dirigidos a si. Ou seja, Dostoiévski observa o mundo fora da sua bolha e em como ele entra em contradição extrema no seu íntimo, indo, em jeito de comentário, recolhendo os golpes. Emocionando-se. Como bildungsroman existencialista muito peculiar.
Qualquer coisa de literário

Os ecos do passado encontram-se nas centelhas de lembrança quando, no presente-sempre-presente, vagueiam pela mente num infinito temporal onde tudo está aqui e agora mas é, afinal, a nossa primeira memória. 

Lembro-me, por exemplo, de um dos meus primos a empurrar-me vagarosamente no triciclo onde estou montado, terraço fora. Indo e vindo, tal como é o carácter das reminiscências. Lembro esse terraço iluminado pelo sol fresco de uma manhã de Verão, com muitos vasos de flores evadindo-se para o alto ao longo. Lembro-me de termos muitos gatos - sempre foi assim, na minha infância -, alguns, já mais fortes, sobem até ao sótão pela escada que está sempre acessível, encostada nas paredes. Lembro o meu tio ao Domingo. Da sua barba grande que me petrificava de medo. Depois do terraço, saímos para o jardim. Havia logo ali uma pedra gigante, em forma de paralelepípedo, que segurava um esqueleto de ferro do que foram, um dia, bancos de automóvel. Havia assim alguns destroços pelo jardim. Se o vento nos voltasse à esquerda, deparar-nos-íamos com dois ou três pneus gastos, empilhados, servindo de vaso a jarros, e também para bifurcar os caminhos. Um dá para o poço, outro para o resto do jardim. A imagem destes pneus-bifurcação de caminhos acompanha-me sempre, sobretudo quando vejo a gata branca que tivemos parir a eles encostada. Era a segunda ninhada que paria - estes não tiveram tanta sorte: a gata levava-os do sexo à boca para os matar. Carnificina que dá qualquer coisa de literário.